Ao longo do cais eu era substituída por uma mulher mais fraca do que eu, observando os guindastes. Hesitei muitas vezes em deslocar a rota, perder-me pelas ruas e sair da cidade. Mas voltei. E como um robô de apenas uma função, já estava parada na porta de casa. De novo.
Saí do carro com raiva. Uma raiva que me lembrou um filme em que um homem puxa a Lua pra mais perto da varanda para seu amor. Não ligo pra isso. Não ligo pra nada. E quem fez aquilo com minha roseira? Minha porta de casa estava imunda. A terra sujou meu salto 15 que comprei pensando em você, pensando em furar seu pulmão. Sujei dentro de casa, joguei meus sapatos na cozinha e mordi a boca com tanta força que não senti meus lábios por dois minutos.
Tudo culpa do cigarro. Tabaco seco picado enrolado em mim, que virei o papel que você fumava. E eu que odiava tanto o cheiro que ficava em mim quando te beijava, pago agora o preço. O preço de cinco maços por dia no bar da rua de baixo.
Quando você entrava por aquela porta comigo, eu fumava sem culpa. Não ligava se minha língua ia ficar com o mesmo gosto da sua, não fazia questão nenhuma de bala de hortelã. Não tinha hora pra ir embora. Fumávamos sem pressa, ficávamos sem fôlego. A menor oxigenação resultava muito cansaço. Você sabe disso melhor do que ninguém e mesmo assim fumava. Achava isso maravilhosamente perigoso. Meu fluxo de sangue diminuía junto, mas eu nem sentia. Eu só sentia você.
Nicotina, xileno, tolueno, cetonas, amônia, benzeno, níquel, cianeto, polônio. Sei as definições até hoje. Eu prestava atenção em todas as aulas de Química pra saber o que era aquilo que conseguia me deixar perto de você, o que você tanto gostava. Cheguei a fazer uma carta comparando tudo isso, mas a queimei com o mesmo fósforo que acendi o cigarro ao terminar de escrevê-la. Ninguém sabe, mas você continua sendo minha maior inspiração.
Eu era o cowboy da propaganda de cigarro. A Cruella de Vil dos seus filmes. Mas você não tem mais tempo pra televisão. Nós ficávamos tão entretidos vendo os filmes naquela televisão pequena do seu quarto menor ainda que não cabíamos em nada. Ainda não cabemos.
Só eu sei o que foi chegar em casa hoje e ter que estragar a única coisa que furaria o que tanto você faz questão de estragar com esse vício que me consome mais do que você mesmo. Eu nunca estive tão magrela, tão pálida, tão sem forças. E a única coisa que havia me deixado bonita hoje à beira do cais eu consegui estragar; e também amassar minha geladeira. E isso me lembra que nem posso mais inventar a desculpa de consertar alguma coisa aqui em casa. Você não mora mais aqui. Você não vem mais nessa cidade.
Então eu pensei em sair do litoral. Voltar àquela cidade, nem pequena nem grande, e te achar naquele bairro simpático. Fiquei no quase e continuo nele. Será que você faz idéia que eu estou a um fio do infarto literal? Será que você ligaria? Será que você voltaria? Não tínhamos contrato, mas você poderia ter ficado. Meu drama virou palhaçada quando vi que os outros não sentiam mais sua falta. Só eu.
Sentei no sofá dividindo espaço com as sete almofadas que você tinha me dado com os dias da semana. Fiquei abraçada com duas delas e joguei o resto no chão. Eu não ia chorar. Eu não tinha mais tempo pra isso. Essa droga era evitável, mas eu não consigo mais te largar. Fumar você me consumia tanto que eu já não sei mais o que fazer com o tempo que sobra.
Tentei mover minha carcaça cadavérica. Tropecei na “quarta-feira” e bati a cabeça na mesa de vidro do centro da sala. Aos poucos, o sangue escorrendo da testa fazia uma poça, junto com os montes de cinza do chão.
Engoli a seco uma saliva que ainda restava na boca seca. Lembrei de você vestido em tons pastéis e do seu jeito sedutor que nunca vi igual. A fumaça embaçou minha vista. Fiquei no chão. Só não sabia ainda se era câncer ou cansaço.
3 comentários:
Nossa! Que fantástico :O
aaamei **
Gostei mto do post...!!
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bjinhos..
O tal vício do amor (ll)
Beijinhos.
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