A imagem que jamais sai da minha cabeça, junto às palavras sábias de minha avó, veio-me a tona esses dias. Impossível o falhar da memória, que tão pequena, ainda fissurada em princesas, guardei cada frase que ela disse naquele dia.
Nessa época, vovô estava extremamente mal. Sua saúde já não era mais a mesma, e só tinha forças para sorrir quando vovó dizia que o amava, tocando seus poucos cabelos que restavam. Sua fragilidade me afetava, ainda tão ingênua e igualmente frágil, que me fazia pedir todos os dias, que o desse toda força possível do mundo. Ele sempre foi meu herói, e vê-lo ali rodeado de aparelhos, enfermeiras e médicos, era como dizer que heróis poderiam ser derrotados por eles mesmos: o câncer já o consumia e seus dias estavam contados.
Eu tinha doze anos, e ter que aprender assim tão cedo da fragilidade humana, me fez ver o mundo preto e branco. Lembro com toda clareza, da última semana de vida do vovô, do seu último dia vivo. Todos os netos estavam no hospital e vovó saiu do quarto, após um beijo na testa do vovô, adormecido. Ela se sentou no chão do corredor, chamou-nos para ficar ali junto dela. Colocou meu irmão no seu colo, ainda tão pequeno que mal sabia falar, mas que insistia em repetir o nome do vovô entre soluços, no pranto desesperado de uma criança sem desamparo. Abraçou minha prima mais velha, enquanto ficávamos todos juntos a ela, e o evidente rosto sem vida dela, igual ao nosso, já era um sinal de perda, antes mesmo do vovô partir. Então, segurando as lágrimas, a voz traindo os lábios, insistindo em não sair, começou a contar a história que mais marcou minha vida.
"O avô de vocês. Talvez não saibam, mas Deus o quis na minha vida desde que nasci. Deus colocou o amor dentro de nós, antes mesmo de um dia nos vermos. Já era amor antes de ser. Lembram, meus pequenos, daquela praia que íamos todo verão? Sei que não era o melhor pedacinho de terra pra vocês, mas para mim e para o seu avô, ali era o nosso pedacinho do mundo. Singular, único, nossa história. E foi naquela areia, ao som das ondas, que descobri o quanto amava seu avô e o tamanho do amor dele por mim.
Era nosso aniversário de casamento. Faziam quatro anos que estávamos juntos, sem mal saber que chegaríamos a mais de cinquenta. Já esperava a sua mãe, nossa primeira filha. Ela afagou minha prima que já chorava. Andávamos pela praia, enquanto o sol se punha, encontrando o mar no horizonte. Das cores do céu me lembro bem. O som das ondas foi a trilha sonora perfeita para aquele pedacinho de amor que crescia cada vez mais, naquele lugar unicamente nosso. Nossas mãos dadas balançavam no ar, unidas, uma só. Mesmo sem ver, conseguia sentir o sorriso nos lábios do seu avô, e logo me vi sorrindo também. Com toda gentileza ele me pediu que parasse, e assim fiz. Com a voz que mais amo, escutei-o declarar seu amor, da forma mais única que poderia fazer. Ele sabia me surpreender com cada gesto, e eu amava isso nele.
_Meu bem, vê essas pegadas na areia?_ele apontava para o caminho que tínhamos feito.
_Sim, querido, é lindo. Mas o que tem?_ com ele eu via tudo mais lindo. Só ele me faz sentir assim, mesmo na cama que está agora.
_São quatro pegadas. Duas minhas, duas suas. Caminhamos juntos, sempre. Saiba que sempre estarei contigo.
Ele se ajoelhou, segurou nas minhas mãos e sorrindo ao meu sorriso, realizada, ele continuou:
_ Te seguirei como seu fiel escudeiro, minha amada. Porque amo-te e sei que és minha por inteiro, assim como sou teu. Sempre andarei com você, meu amor, em todo o caminho.
Seu avô sempre teve a capacidade de me deixar sem palavras. Eu não sabia se ria ou chorava, diante de tanta perfeição e amor. Assim resolvi chorar de felicidade. E abraçados, sentindo a água tocar nossos dedos dos pés, sentei ao seu lado para assistir, enfim, o sol se pôr, até surgir as primeiras estrelas.
Como um conto de fadas, aquilo para mim, era um sinal completo de sentimento verdadeiro, que independente de qualquer coisa, a história de vovó teria um final feliz. Enquanto ela contava, outras pessoas, impressionadas com a serenidade das suas palavras, juntaram-se a nós. Enfermeiras, médicos, outras pessoas que passavam pelo mesmo naquele hospital, pararam para escutá-la. Ela continuou.
Eu quis, então, ver até onde meu amor seria capaz de me impressionar. Vendo seus olhos refletindo a luz do luar, com toda a paz possível, transbordando de amor sem precisar de palavras para que eu o entendesse. Eu também me sentia completa.
_Sabe, meu amor, espero que me entenda. Passou-me algumas cenas da nossa vida diante dos meus olhos. Sem intenção notei, ao olhar para trás, que em muitos momentos no caminho, havia apenas um par de pegadas na areia.
Ele me abraçava forte, e me sentia cada vez mais protegida em seus braços. Continuei dizendo.
_E isso aconteceu, não sempre, mas nas vezes que vivi os momentos mais difíceis e angustiantes da minha vida. Não esqueço tuas palavras, meu amor. Não disseste que sempre andaria comigo, em todo caminho? Durante os momentos difíceis, encontrei apenas um par de pegadas na areia. É difícil compreender por quê, nas horas que eu mais necessitava de você e do seu amor, me deixaste sozinha. Não nego, querido, doeu muito.
Colando meus lábios ao dele, sentindo as lágrimas banharem meu rosto novamente, e dessa vez, o dele também, ele limpou as lágrimas que insistiam em cair dos meus olhos. Sorrindo em um abraço silencioso, eu deitei em seu colo, meu cabelo tocando a areia, esperando sua resposta.
_Preciso sempre dizer que te amo, porque sempre esqueces o tamanho do meu amor por você. És meu tudo. Sou incapaz de viver um dia sequer, sem você, meu bem. Assim como tudo deixa uma marquinha, você é assim em mim. Insuportável os dias sem você, seu teu carinho e seu sorriso bobo logo de manhã.
Naquele momento eu sorri deslumbrada. Ele tocou meus lábios, como se mostrasse exatamente do que estava falando.
_Minha querida, eu jamais te deixaria nas horas de sofrimento e de dificuldade. Não suportaria te ver chorar por dor, quero suas lágrimas de felicidade. Quando viu na areia, apenas um par de pegadas, meu amor, eram as minhas pegadas. Foi exatamente nesses momentos que te carreguei nos braços.
Só então, naquele pedacinho de mundo somente nosso, que entendi que éramos para sempre."
Ela se levantou, entrou de novo no quarto, sentou na maca e beijou o rosto já pálido do vovô. Como se entendesse o que tinha acabado de acontecer, no último desejo antes de partir, ele a abraçou pela última vez e disse que a amaria para sempre, e se foi. Eu tinha certeza de que o amor deles não acabava ali. Foi então que percebi que um herói nunca é fraco se vive por amor, e meu avô viveu. Por isso ele é meu herói. E sempre será.
Aos meus velhos. Meus heróis.
1 comentários:
Prima como sempre está PERFEITOOO o texto, nem preciso dizer chorei lembrando da sabiedade dos nossos avós, sorte que estes ainda não se foram e quando isso acontecer tenho certeza que a sabiedade da vovó e do vovô sera esta ai mesmo, que você escreveu. Te amo de mais primaaa. <3
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